Do mar para o espaço: Ana é a primeira cientista-astronauta portuguesa

É engenheira geotécnica e sempre se dedicou ao estudo dos mares mas, recentemente, Ana Pires quis dar um salto até ao espaço. Participou no Possum, um programa de investigação que estuda as nuvens noctilucentes e prepara astronautas para voos suborbitais. E isso valeu-lhe o diploma de cientista-astronauta, a primeira mulher portuguesa a receber este título.

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Adriano Miranda

“Quando somos pequeninos e nos perguntam o queremos ser quando crescermos, muitos respondemos que queremos ser astronautas.” Quem o diz é Ana Pires, investigadora de 38 anos e a primeira mulher portuguesa a receber o título de cientista-astronauta. A “curiosidade pelo espaço, pelo incógnito e desconhecido” levaram-na a candidatar-se ao Polar Suborbital Science in the Upper Mesosphere (Possum), um programa de investigação apoiado pela NASA, que se debruça sobre o estudo das nuvens noctilucentes e prepara cientistas-astronautas para voos suborbitais.

Terminou o curso em Outubro, depois de um mês e meio intensivo de aulas práticas e teóricas, na Universidade Aeronáutica de Embry Riddle, na Florida, e outro de aulas virtuais, enquanto ainda cá estava. Mas antes das nuvens, Ana Pires estudava os mares: “A minha área de investigação sempre foi a parte das geotecnologias do mar. Trabalhava com cartografia, sistemas de informação geográfica e aplicação da rocha nas obras marítimas”, conta. À licenciatura em Engenharia Geotécnica, mestrado na área dos minerais e rochas industriais e doutoramento no ramo das geociências, junta-se agora um novo mestrado, desta vez em Robótica e Sistemas Autónomos — área na qual está a trabalhar no Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP).

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Ana Pires achou que a sua área não se distanciava dos objectivos do programa Possum, até porque encontra, entre o que é feito debaixo de água e no espaço, um ponto comum — “o desconhecido”. Mais ainda, quis “levar para lá os conhecimentos adquiridos no ISEP e no Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (Inesc-Tec, na sigla em inglês)”, e trazer para casa novas competências e a possibilidade de “futuras cooperações.”

Não foi a primeira portuguesa a participar neste projecto. Em 2016, Rui Moura integrou o Possum e foi nesta altura que Ana Pires se interessou no programa. “O professor [Rui Moura] tem muitos conhecimentos e estava numa perspectiva diferente da minha, até porque é piloto, mas eu fiquei sempre curiosa”, conta. Dois anos mais tarde, concorreu, foi uma dos 11 escolhidos e, com a ajuda das instituições a que está ligada, o ISEP, o Inesc-Tec e o Instituto Politécnico do Porto (IPP), conseguiu pagar a propina de cinco mil euros que lhe garantia a entrada.

Voar, ver as nuvens e voltar

O principal objectivo do Possum é “medir características das nuvens noctilucentes, de forma a obter dados para conseguir ter algum feedback em termos de mudanças climáticas”, explica. As nuvens noctilucentes são as nuvens mais altas da atmosfera — estão a 83 quilómetros, na mesosfera — e têm interesse porque são sensíveis às mudanças climáticas, influências solares e terrestres: pequenas mudanças no ambiente atmosférico podem levar a grandes alterações nas propriedades destas nuvens.

O Possum quer chegar a elas, mas, para isso, precisa de voar até à mesosfera e voltar à Terra: “Para observar as nuvens noctilucentes, há que fazer quase um arco que nos leva ao nosso objectivo e depois cair de volta à Terra”, por outras palavras, há que fazer um voo suborbital. Até hoje, só foram realizados nove voos suborbitais tripulados — o último, realizado na semana passada pela Virgin Galactic, levou dois pilotos e um manequim —, mas o grupo que Ana Pires integrou também recebeu formação para participar num voo destes: “Tivemos a oportunidade de, num simulador, fingir que estamos num voo suborbital, onde tínhamos que recolher informação, tirar fotografias e filmar o que estávamos a ver”, refere a investigadora.

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Além desta experiência, Ana Pires participou em voos acrobáticos, para sentir as forças G, “aquilo que os astronautas sentem quando estão a arrancar para o espaço”: “É incrível perceber que, do ponto de vista psicológico, queria sempre mais, mas fisicamente não aguentei o primeiro voo e acabei por vomitar”, ri. Participou também numa simulação de uma câmara hipobárica, onde “a sensação é a de estar a muitos pés de altitude” e experienciou os sintomas de hipoxia. “Senti a cara a arder, mas não perdi a consciência, não despenhei o avião que estava a simular que pilotava e mantive coerência na conversa que estava a ter com o médico que nos assistia de fora da câmara”, relata a cientista-astronauta.

A troca de conhecimentos entre as pessoas que integravam o grupo multidisciplinar foi, para Ana Pires, a grande mais-valia. Ainda se reúnem todos os meses, virtualmente, para discutir o que pode ser feito no futuro: “Tentamos perceber como é que, com o nosso background e conhecimentos, podemos ajudar no projecto de investigação que eles têm.” Recentemente, foi seleccionada, no âmbito do mesmo programa, para fazer parte de um curso mais específico: “Ainda é prematuro”, explica, mas “está ligado a tecnologias e instrumentação, usando fatos espaciais, mas com o enquadramento da geologia lunar e de Marte.”

"Quero estudar, investigar e adquirir dados para este projecto científico” e, se possível, ser a ponte entre “o que se faz no ISEP e no Inesc-Tec e o que se faz lá em cima, no espaço”, remata a cientista-astronauta. Não vai voar, até porque não é piloto, mas, no que dela depender, vai continuar com um pé no mar e outro no espaço. 

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