A Vós a Razão
UM MILHÃO DE TONELADAS
Abílio Pacheco*
Era uma vez uma criança que teve a sorte de ter um tio que lhe explicou como os foguetões escapavam à força da gravidade deitando fora os tanques de combustível vazios para ficarem mais leves. Também talvez por isso cresceu nela a vontade de ler como forma de explorar o mundo. Depois seguiu-se a descoberta da biblioteca da Gulbenkian na cidade mais próxima, livros sem fim sobre assuntos desconhecidos. Era essa a ideia mais aproximada de liberdade que conhecia – dispor de um mapa para o desconhecido que podia explorar sem limites… Até ao dia em que embateu de frente com a censura – quando a responsável da biblioteca a impediu de continuar a ler um livro extraordinário por ter menos de 14 anos. Tratava-se de A Metamorfose de Franz Kafka, como veio a descobrir dois anos mais tarde, quando avidamente pôde ler e reler a sua obra para sempre incompleta. Embora fosse uma biblioteca pequenina, com não mais de dez mil livros, parecia e era uma porta encantada – e essa criança nem sabia a sorte que tinha.
O método que usava era simples: passear à sorte pelas prateleiras, folheando livros até encontrar algum que despertasse a sua atenção (na realidade a dificuldade era selecionar apenas cinco – o limite dos que se podiam requisitar para levar para casa). Depois, se o livro era entusiasmante, ia à enciclopédia e procurava outros livros do mesmo autor, de amigos dele, da mesma corrente de pensamento/literária ou sobre o mesmo tema. E se fosse uma má escolha, a penalidade que aplicava a si própria era a de ler o livro até ao fim (só aconteceu duas vezes).
Essa criança curiosa que vive ainda dentro de mim teve a sorte de ser escolhida para uma bolsa de investigação no INESC Porto sobre o complexo tema dos incêndios.
Como sempre, quando se entra a fundo num assunto novo (e o universo está repleto de temas entusiasmantes), as novidades inesperadas sucedem-se. Primeiro descobri pela mão do meu chefe e orientador, o Professor João Claro, que a supressão do fogo conduz a mais fogos, isto é, a convicção de que se devem apagar todos os incêndios conduz a incêndios ainda mais catastróficos. Depois “descobri” que o fogo controlado (ou prescrito) podia ser usado (no inverno) para equilibrar a ação do homem sobre o curso natural das florestas e interromper esse ciclo de devastação.
No quadro mais vasto dos sistemas de engenharia (ver “A Perspetiva Sistémica”) e suas dinâmicas, começo a compreender o problema dos “reacendimentos” em situações em que um número de ignições (incêndios nascentes) descomunal (centenas num dia) esgota todos os recursos disponíveis, e a sua relação com o fogo subterrâneo, as técnicas de combate inapropriadas (apenas água, sem recurso a ferramentas manuais), e com o problema dos “falsos alarmes” (que descobri por acaso, ver “Serendipidade”) – com todo o seu impacto no decréscimo dos meios de combate disponíveis, nos custos e principalmente na segurança dos próprios bombeiros.
Alguns números interessantes:
- 9% das exportações portuguesas resultam de atividades económicas relacionadas com a floresta;
- Entre 2000 e 2004, por ano e em média:
- ardeu 1/40 da floresta do pais,
- as perdas diretas ascenderam a 250 milhões de euros,
- e foram gastos mais de 120 milhões de euros em prevenção/supressão;
- 200 milhões de euros foi o valor das perdas em produtos e serviços prestados pelos ecossistemas florestais em resultado dos 22 mil incêndios que ocorreram ao longo de 2010;
- 16,6% dos alertas no distrito do Porto revelaram-se um “falso alarme” (1241 em 7462) e 17,5% foi o valor nacional (5654 em 32357);
- 1h e 6min é o tempo médio necessário para despistar um “falso alarme”, ocupando uma ou duas viaturas com quatro ou cinco elementos cada, e estima-se em cinco a dez milhões de euros o seu custo (direto);
- Finalmente, um milhão de toneladas foi o valor das emissões de CO2 que resultaram dos 140 mil ha que arderam no ano passado.
Quando cheguei ao INESC Porto no mês passado, fui bem recebido e muito apoiado pela Grasiela, que também se chama Patrícia, e também pela Marta. Depois descobri com agrado a realidade multicultural (Bangladesh, Colômbia, Estados Unidos, Índia e Turquia) nas secretárias à minha volta: num grupo de 15 investigadores, cinco são estrangeiros. E logo começou a desenvolver-se a minha amizade com o Fayzur, natural do Bangladesh. A juntar a tudo isto, destaco ainda o ambiente de partilha que se respira na UITT [Unidade de Inovação e Transferência de Tecnologia], pontilhado semanalmente pelo Show and Tell todas as quartas-feiras.
Só coisas boas no INESC Porto?
Bem… o sistema de ar acondicionado podia ser melhor e tive de adiar a dissertação que estava avançada (Impact of a young cluster on the structure of its network of collaborations) sobre a rede de colaborações no Health Cluster Portugal (HCP), mapeadas através dos grafos correspondentes, e onde utilizo técnicas de Social Network Analysis (SNA) para investigar a evolução das relações de colaboração (entre as 110 entidades que o constituem) em time frames de três anos. O objetivo é medir o impacto da oficialização do cluster nas entidades que o constituem, analisando longitudinalmente a evolução da quantidade de artigos publicados na ISI — escritos em colaboração. E o contributo original traduz-se no facto de acrescentar a análise temporal (longitudinal) às técnicas tradicionais da SNA (observação dinâmica da evolução de um grafo ao longo do tempo) e nas possibilidades que se abrem no que respeita à previsão do comportamento futuro de sistemas complexos.
Depois da sorte de ter os professores que tive no decurso do MESG [Mestrado em Engenharia de Serviços e Gestão], sinto-me feliz por pertencer a esta equipa e poder aceder a todos os recursos que temos à nossa disposição num excelente ambiente de trabalho!
*Colaborador na Unidade de Inovação e Transferência de Tecnologia (UITT)