A EXTINÇÃO DO CRETÁCEO
A ciência portuguesa emergiu de uma sopa primordial inerte. Não foi o génio de Oparin construindo moléculas orgânicas com descargas elétricas: o choque energético veio da então chamada CEE, que evoluiria para a União Europeia.
O que se construiu, desde 1986, foi a duras penas. Antes, era o deserto de pessoas e condições, uma amálgama mineral inerte. A 25 de abril de 1974, diz-se sem certeza mas com convicção, a maioria dos Professores Catedráticos não teria o doutoramento. Como se sabe, muitos foram nomeados por canetada do regime (e outros destituídos). Por isso, a construção da ciência em Portugal também passou pelo prestígio social dos cientistas. A própria palavra cientista era interdita quando aplicada a portugueses, despertava sorrisos irónicos. Ainda hoje, para muitos, somos apenas investigadores.
Houve, pois, um par de gerações que quase tudo teve de (re)construir. Tudo faltava e tudo se fez. Fizeram-se pessoas, muitas pessoas – foram primeiro numa diáspora temporária buscar um doutoramento lá fora para se poderem legitimar cá dentro. Depois, arrancou a formação interna.
Mas a mudança real, o ponto de bifurcação, a definição de uma mudança de fase foi a ereção de estruturas. Falta certamente fazer o trabalho histórico de síntese dessa revolução.
A ciência portuguesa organizou-se com a virtude e sabedoria pragmática dos portugueses: se algo não funciona, vamos organizando uma coisa ao lado que deixe fazer. No Brasil chamam "jeitinho" e nem sempre é elogio. Mas, com jeitinho, emergiram institutos de investigação e o modelo provou.
A estruturação é mais do que isso. Foi criada uma cultura de responsabilidade e de avaliação. Foi conferido profissionalismo na resposta aos desafios. Foi organizada uma cadeia de comando com mais eficácia do que o modelo académico ortodoxo. Depois, foram criados mecanismos de suporte global, de entre os quais releva a rede de dados interligando todas as instituições de conhecimento do país (gerida pela FCCN), e foi proporcionada uma economia de escala global com a disponibilização da biblioteca online. O sistema complexificou-se.
As pessoas são as cellulæ mater da ciência, mas toda a gente sabe que um organismo é mais que a soma das células. A ideia que a eficácia é um resultado inevitável de acumular livre pessoas é não só ignorante como perigosa. Até decantar organismos complexos, a natureza gozou de milhões de anos seguindo Darwin cegamente, experimentando sem plano – e convém recordar que ficaram pelo caminho muitas mais espécies do que as que sobrevivem.
A simplificação de sistemas sociais complexos é a via do empobrecimento. Todos conhecemos as tragédias de uma África da assistência, onde as doações internacionais destruíram o tecido social produtivo local.
Um sistema ecológico não se constrói lançando um asteroide sobre o planeta da realidade e esperando que a poeira seja criativa. Mas parece que, no cenário dos organismos da ciência portuguesa, se pretende anunciar a sua Extinção do Cretáceo.
A ciência portuguesa é, como qualquer estrutura social, um sistema tanto mais rico quanto mais complexo. A progressiva destruição das estruturas não é apenas um erro inocente: é uma maldade feita a Portugal.
Créditos foto: Agência Espacial Europeia