A HIDRA
Dizia José Torres: deixem-me sonhar. I have a dream, já o dissera Luther King, sem saber que entendia de futebol.
O futebol é, como sabemos, um dos ópios do povo, a parte do circo que faz esquecer a falta de pão. Há um museu do pão para os lados de Seia, o que parece correto pois ceia sem pão sabe a natal sem bacalhau. Este peixe que veneramos está-nos no sangue e na cultura mas, infelizmente, mantém-se em perigo de extinção devido ao excessivo esforço de captura.
O bacalhau atlântico dá pelo nome de gadus morhua e povo que consome muito gadus talvez se arrisque a adotar comportamentos de bovino. De outra forma, fica difícil explicar a aceitação ungulada do regresso da burocracia ao dia a dia - e na forma revanchista de império que recupera territórios perdidos. Quem pensava que a cultura do papel selado era águas passadas, estava desatento: tudo agora serve para justificar a máquina opressora do primado do procedimento sobre a eficácia e o bom senso. Voltamos aos Tempos Modernos, a fazer gestos repetitivos e sem sentido, a perder tempo a preencher formulários, escrever relatórios, engraxar auditores, bater centenas de carimbos por fatura para justificar despesas e proporcionar o benefício e o governo do país, de novo, à cinzenta e improdutiva turma dos mangas de alpaca.
A alpaca é um bicho até simpático, parente do lama e da vicunha e com quem partilha o nojento hábito de cuspir. Cuspir é a palavra que se usa mas, na verdade, por vezes ocorre mesmo o regurgitar de ácidos estomacais sobre o ofensor. Vomitar é, realmente, a reação que nos ocorre ao constatar como os organismos oficiais concorrem na proteção, e mais, no reforço e exigência deste delírio kafkiano que se abateu sobre o país como as cinzas do Vesúvio.
Este vulcão, recorde-se, soterrou Pompeia e Herculano em 79 d.C. Com liberdade poética admitiremos que esta última cidade recebeu o nome em homenagem a Hércules, cujas colunas rebatizadas ainda guardam a entrada do Mediterrâneo. José Torres era o Bom Gigante mas, se algo sonhamos agora, é que venha Hércules, o vencedor de gigantes, e desfaça esta Hidra que nos consome.
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