SOBRE OS DIREITOS DOS BOLSEIROS
A figura do bolseiro é, em todos os países desenvolvidos, um esteio do sistema de produção de ciência. Na lógica da formação de recursos humanos, o bolseiro é um aluno que os cidadãos sustentam, através dos seus impostos, na expectativa que depois, durante a sua vida activa, o valor retornado pelo bolseiro seja superior ao valor investido na sua formação.
Repita-se: na lógica da formação de recursos humanos e num cenário de país fechado.
Mas na lógica da produção de ciência, um bolseiro é um indivíduo que, em troco da sua formação, devolve ao país ou entidade financiadora um valor muito superior à bolsa, em virtude do trabalho que desenvolve enquanto bolseiro.
Sublinhe-se: este modelo admite um país aberto a estrangeiros e na lógica de produção de conhecimento.
A universidade portuguesa está, a pouco e pouco, a mudar de paradigma. O clássico era ver a pós-graduação como a produção de recursos humanos – o actual é interpretá-la como a produção de ciência (leia-se conhecimento, leia-se transferência de tecnologia).
Por isso, os países desenvolvidos apostam em programas de bolsas. A bolsa estabelece um vínculo mais precário do que o contrato de trabalho entre bolseiro e entidade concedente. A lógica da bolsa é que é um apoio da sociedade para a formação do indivíduo, não é uma lógica laboral. Mas, dada a alteração do paradigma, impõe-se uma reflexão sobre as responsabilidades de quem alberga bolseiros e compõe a sua actividade com contributo destes.
Na verdade, os custos das instituições de investigação científica, no acolhimento de bolseiros, ultrapassam e muito o valor monetário das bolsas. Uma instituição como o INESC Porto, ao receber bolseiros, está a investir muito mais do que a remuneração mensal do bolseiro: em equipamentos, em posto de trabalho, em serviços de rede, em apoios de comunicação, em serviço jurídico, em direcção estratégica e no custo da supervisão.
Isto só é sustentável se o bolseiro, pelo seu labor, acrescentar valor à instituição. Uma bolsa não é um contrato de trabalho mas é um compromisso de trabalho. Não confere direitos laborais mas exige uma justa retribuição ou compensação pela precariedade que implica.
O movimento de bolseiros que pretende reduzir o estatuto de bolseiro ao de assalariado assenta em premissas que, a serem cumpridas, arruinariam a própria investigação e criariam mais um estrato semi-fóssil de funcionários públicos ou para-públicos, no pior que conhecemos desse tipo de organização. Não é desejável que se forme uma classe de investigadores que o são apenas porque o são.
Isto dito, há que reconhecer que alguns tópicos propostos à discussão por movimentos de bolseiros merecem reflexão. Mas, mais do que uma certa mesquinhez de reivindicar emprego certo e seguro – o que o Estado não pode dar – importa dissecar o que é que os cidadãos portugueses, através dos seus impostos, estão dispostos a pagar. Isto porque, além dos bolseiros portugueses, há já muitos – e cada vez desejavelmente serão mais – bolseiros estrangeiros em Portugal, e é preciso distinguir os que vêm com bolsa paga por uma entidade estrangeira, os que recebem em Portugal um complemento de bolsa e os que recebem bolsa do Estado português, os que recebem bolsa de entidades empresariais, públicas ou privadas e os que recebem bolsa de instituições sem fins lucrativos.
Por outro lado, há que ponderar qual a componente de formação a que corresponde a bolsa. Se essa componente for única ou claramente dominante, dir-se-á que um bolseiro deverá ter uma protecção do Estado no mesmo plano que outro estudante qualquer e outro grau de ensino. Porém, quando se reconhecer que a componente formação é acompanhada por uma componente produtiva relevante, parece ser elementar que alguma protecção adicional deva ser garantida pelo Estado.
Em compensação, neste caso deverá também o estatuto do bolseiro prever uma assunção de responsabilidades civis pelo bolseiro, nomeadamente em caso de abandono do trabalho, que deverá ser equiparado a rescisão de compromisso. O actual estatuto do bolseiro permite o abandono puro e simples e sem qualquer pré-aviso. Mas se se reconhecer uma função de produção, terá que se aceitar que os compromissos assumidos pelas instituições de acolhimento, na realização de projectos que recorrem a bolseiros, exigem alguma responsabilização por parte dos sujeitos que em algum momento se comprometeram a executá-los.