30 Anos à Conversa
A. Augusto de Sousa: O que é que um recém-chegado de Inglaterra, com o grau de doutor, esperava vir a ter do INESC quando este foi constituído no Porto em 1985? Que necessidades sentia e que expectativas criou?
Artur Pimenta Alves: De facto, passados todos estes anos, é importante explicar o contexto em que apareceu o INESC no Porto. Estávamos na década de 80 e a investigação nas universidades não tinha nada a ver com o que existe hoje. Era muito pobre, sem capacidade de investimento, sem laboratórios devidamente equipados e sem investigadores; havia investigação num número reduzido de áreas mais internacionalizadas mas as engenharias viviam num ambiente em que a maioria dos professores pouca atividade tinha na faculdade, dedicando-se à prática de engenharia ou de consultoria especializada em instituições/empresas externas.
Por outro lado vivíamos tempos em que grande poder estava atribuído aos catedráticos, numa universidade fortemente hierarquizada. Este ambiente era particularmente frustrante para todos aqueles que como eu regressavam de doutoramentos no estrangeiro e queriam cá montar grupos de investigação que lhes permitissem continuar a trabalhar e que sentiam grande dificuldade em montar uma estratégia, captar financiamento e geri-lo de forma adequada numa instituição neste estado.
O INESC, primeiro em Lisboa e depois nas universidades mais importantes do país incluindo a do Porto, veio alterar esse ambiente.
Mas qual foi a ideia que me atraiu no INESC? O cerne da estratégia do INESC esteve em encontrar nas empresas de telecomunicações, na altura ainda monopolistas, ricas, com ligação ao estado e que tinham obrigações de apoiar as universidades e a indústria nacional, a vontade para financiar uma nova instituição, o INESC, detido a 50% pelas universidades e os restantes 50% pelos operadores (na altura CTT, TLP e Marconi). A instituição seria gerida por mérito e não por títulos académicos. O princípio era: as universidades contribuíam com recursos humanos para a investigação e as operadoras com meios financeiros e ainda enunciando problemas importantes da sua atividade que necessitavam solução. Isto correu bem, foi pioneiro, deu origem à primeira instituição de Interface no país, a qual conseguiu de forma impar crescer, tendo aproveitado de forma muito eficaz os resultantes da nossa entrada na UE, para se consolidar e internacionalizar a ponto de hoje não requerer já o apoio das telecomunicações. Importa salientar que os operadores tiveram uma atitude meritória, sem a qual esta consolidação não teria sido possível: permitir que o INESC, que financiaram, pudesse trabalhar noutras áreas para além das telecomunicações, desde que captasse os financiamentos necessários para essas outras atividades.
Assim quando eu o Salcedo e o Borges Gouveia nos lançamos na criação do INESC no Porto estávamos a assumir compromissos de montar infraestruturas laboratoriais e de montar equipas para desenvolver atividades de investigação aplicada muito ambiciosas, partindo praticamente do zero.
Gostava aqui de salientar que estávamos a afrontar a hierarquia, não convidando os catedráticos a dirigir o INESC no Porto donde resultou o agravamento da minha guerra pessoal com o Professor Velez Grilo. Gostava aqui de prestar a minha homenagem ao Catedrático Manuel de Barros, do nosso lado desde o início, que teve um papel importante nas complexas batalhas que se foram travando dentro da UP.
Resumindo diria que a criação do INESC no Porto foi um ato de irreverência e de grande atrevimento que o tempo demonstrou que valeu a pena. Pelo que me diz respeito o que aconteceu depois está muito, mas muito, para além das expectativas da altura!
A. Augusto de Sousa: Com vários anos de contribuição pessoal para o INESC, num cargo da direção, quais foram para si os momentos mais marcantes da vida da instituição? Qual foi a influência que os mesmos tiveram no progresso da ciência, da inovação tecnológica e, principalmente, no desenvolvimento da região?
Artur Pimenta Alves: O primeiro momento foi certamente a criação do INESC no Porto, que aconteceu em simultâneo com a assinatura do Projeto SIFO em cujo desenvolvimento estava diretamente comprometido.
O projeto SIFO era mais que um projeto de investigação aplicada e foi financiado pelas 3 operadoras e pela Secretaria de Estado das Comunicações (na altura liderada pelo Dr. Raul Junqueiro, nosso apoiante desde o início). O projeto pretendia desenvolver uma rede de comunicações em fibra ótica fornecendo serviços integrados de áudio, vídeo, telefone e dados, devendo conduzir a protótipos pré industriais que interessassem a indústria nacional, sendo as instalações para a instalação do INESC Porto cedidas pelos TLP.
Porque era especial? Por um lado porque o financiamento incluía a criação de todos os laboratórios e apoios técnicos necessários em áreas novas e era por isso muito elevado. Tão elevado que se comparada aos financiamentos na altura geridos pelas instituições de financiamento da investigação a nível nacional. Isso dava-nos uma grande responsabilidade.
Por outro lado, dada a abertura dos operadores, criava a oportunidade de lançarmos o INESC no Porto, aberto a outras áreas para além das telecomunicações. Aceitei integrar o grupo inicial que tinha grande contribuição da faculdade de ciências, pois existiam lá 3 investigadores regressados do estrangeiro com doutoramentos nas áreas da ótica, que foram a justificação para o investimento, o Salcedo, o Pereira Leite e o Manuel de Barros.
Na equipa de direção inicial estava eu e o Borges Gouveia, de Engenharia e o Salcedo das Ciências. O Borges Gouveia, que não tinha a ver com as telecomunicações, teve um papel na afirmação do INESC no Porto noutras áreas de intervenção que se foram desenvolvendo logo desde o início. Do meu lado o SIFO, nos seus aspetos para além da ótica, para os quais contávamos com o Salcedo e com o Pereira Leite, era um enorme desafio; havia do nosso lado grande atrevimento e muita fé na sorte, quando assisti à assinatura de um compromisso que nos levava a desenvolver uma rede com sistemas de transmissão muito rápidos, com sinais digitalizados de áudio de alta-fidelidade e de vídeo, um comutador digital de alto débito, quando não tínhamos nenhuma experiência em eletrónica, nem eletrónica digital e muito menos na eletrónica rápida que isso iria requerer.
Seguiu-se a fase de angariação de recursos e sua formação de que resultou muita gente hoje doutorada e ativa no INESC e na FEUP e noutras instituições: Henrique Salgado, Abel Costa, Teresa Andrade, Aníbal Ferreira, Mário Jorge Leitão, José Ruela, Manuel Ricardo, Paulo Ferreira e fora, Nuno Vasconcelos, Manuela Sousa Pereira, Paulo Moreira, Jorge Salgado. Sem doutoramento e a trabalhar bem próximos de nós António Gaspar, Alberto Maia, … E muitos mais saíram deste projeto alavanca das telecomunicações no INESC Porto. Todos levamos o projeto a bom porto, mas não conseguimos passar à industrialização dos resultados. Mas isso é uma história longa que exige análise detalhada até porque na década de 80 se iniciou a fase da liberalização das telecomunicações que introduziu profundíssimas alterações no setor quer ao nível dos operadores, quer ao nível da indústria e do financiamento de I&D.
Eu próprio acabei por me concentrar nas áreas da codificação de vídeo e nos media digitais, áreas em que contribui para o lançamento de muitas atividades e projetos com impacto nacional e internacional.
Um segundo momento foi a criação do INESC Porto autónomo em 98/99
A criação do INESC Porto inseriu-se num processo de reestruturação do INESC nacional e foi um processo difícil para a equipa dirigente em que eu estava incluído. Não tínhamos controlo completo das nossas contas, éramos muitas vezes acusados de ser causadores de dívidas no INESC no seu todo e isso, embora nos parecesse que não era assim, representava um risco considerável. Valeu a pena corre-lo, autonomizar os nossos serviços de forma a podermos tomar conta dos nossos destinos. Graças ao esforço e à liderança do Pedro Guedes de Oliveira, o processo correu bem e estamos hoje bem sólidos, apresentados como caso de sucesso dentro o universo dos INESCs. Destaco aqui ainda o apoio que tivemos da parte do Luciano Tavares, então na direção do INESC.
Para mim a autonomização deu-se num momento complexo, em que eu andava a negociar com a BBC um projeto, posteriormente implementado e que permitiu que desenvolvêssemos, com grande sucesso aliás, um estúdio digital de TV, todo desenvolvido com tecnologias de informação genéricas, recorrendo a um conjunto de ideias que estão hoje consagradas mas na altura pareciam heresias.
Por isso passei uma sabática em 98/99 na BBC, participando por meios eletrónicos na preparação da nova instituição cuja direção integrei. Foi um momento inesquecível, criando-se uma instituição importante na região que cresceu, teve e vai continuar a ter grande impacto no tecido empresarial.
A. Augusto de Sousa: Na sua área principal de atuação (telecomunicações em sentido lato), o INESC é, ao longo destes 30 anos, responsável por grandes progressos tecnológicos, alguns com grande impacto nas empresas e na população em geral. Qual ou quais gostaria de salientar?
Artur Pimenta Alves: O SIFO teve grande impacto, principalmente na formação de uma equipa na área das telecomunicações como já referi na pergunta anterior. Há muito mais que podia ser dito sobre a forma como fomos conseguindo adquirir tecnologias, mas quero destacar aqui uma colaboração alargada que iniciei e que durou vários anos com o CERN, em Genebra. O CERN foi muito importante na aquisição de know-how em diversas áreas muito particularmente eletrónica rápida, sistemas óticos, redes de alto débito e até codificação digital. No domínio da eletrónica fizemos uma aliança com a EFACEC que adquiriu um sistema de CAD de circuitos impressos e se certificou para a produção de sistemas eletrónicos para o CERN. Nesse contexto nós desenvolvemos um codec de videovigilância para o CERN, cuja produção e exploração comercial foi contratualizada com a EFACEC. Infelizmente a evolução do grupo EFACEC nessa área não permitiu aproveitar esta oportunidade.
Outro momento de grande impacto foi o projeto da BBC. O projeto que negociei foi concluído a tempo, o estúdio resultante montado em Kingswood Warren para ser usado por profissionais da TV, onde deu muito que falar… Foi um caso de sucesso!
Tínhamos negociado a criação de uma empresa para a exploração dos direitos (50% INESC e 50% BBC) que infelizmente não se concretizou por razões estranhas ao projeto - problemas com o desenvolvimento de uma empresa spin-off da BBC com quem estávamos a tratar do assunto, o qual foi posteriormente alienada à Siemens Networks, comprometendo esse objetivo.
Contudo, a competente equipa do projeto da BBC, negociou a saída do INESC Porto para a criação da MOG. Depois, na sequência de sucessivas alterações, existem já mais duas empresas ativas na região, a GlooKast e a Media Gap, em que mais de 50 pessoas fazem desenvolvimento de tecnologia para apoio de sistemas de produção de TV baseados em IP e conceitos “file-based”, tornando a região do Porto, uma região “estranhamente” ativa e visível a nível internacional nesse tipo de sistemas.
Tudo isto está, de novo, muito acima do que eram as minhas expectativas quando tudo começou!
Artur Pimenta Alves: Como começou a atividade no INESC na área dos Sistemas Gráficos?
A. Augusto de Sousa: Creio que a Computação Gráfica está na história do INESC desde o seu primeiro dia. O Professor Nunes Ferreira, então doutorado recente na área, integrou o INESC em 1985 e colaborou no seu estabelecimento no Porto e por isso montou um grupo então denominado de "Microprocessadores".
O grupo dedicava-se, tal como o nome indica, à componente mais "hardware" da área; vivia-se um tempo de grande evolução ao nível de microprocessadores, com o aparecimento de dispositivos de 32 bits, muito potentes e com evidentes vantagens sobre abordagens "mais clássicas".
Há também que enquadrar aqui o aparecimento do mestrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores da FEUP. Surgido em 1983, começou a "debitar" teses de mestrado em quantidade, algumas das quais em Computação Gráfica... Foram aqui desenvolvidas algumas placas gráficas avançadas, assim como o respetivo software e, desde logo, um interesse especial pelas técnicas de interação (refira-se a propósito que o melhor que existia em termos de computadores pessoais era a interface dos célebres Mac Plus, que marcaram pela positiva a vida dos investigadores do INESC à data), pela modelação 3D e pela síntese de imagens... É aqui, nesta última vertente, que eu apareço como investigador.
Talvez seja de referir, também, a atividade (que era global, do INESC) de formação no âmbito de cursos financiados por fundos europeus. Cursos de tipologia vária foram lecionados e que poderemos (ainda) caracterizar com um nível de excelência, como podem testemunhar alguns dos seus formandos que, ainda hoje, trabalham no INESC Porto e instituições envolventes. O grupo de microprocessadores esteve envolvido em cursos de escritório eletrónico, de eletrónica digital, de ferramentas computacionais para design... Aqui se passava informação aos formandos que saíam como técnicos especializados, e assim como se conseguiam algumas verbas que acabavam por financiar as restantes atividades do INESC, nomeadamente no âmbito da investigação.
Artur Pimenta Alves: Quais foram, numa segunda fase de consolidação do grupo de computação gráfica, as primeiras atividades significativas desenvolvidas para empresas? Que desafios colocava então o hardware utilizado quando o comparamos com a realidade atual?
A. Augusto de Sousa: Os recursos de então eram parcos, caros e de (muito) má qualidade, se comparados com os equivalentes da atualidade... Por exemplo, um sistema capaz de realizar Z-buffer por hardware ocupava um espaço que era talvez triplo do volume da própria workstation da marca SUN a que se ligava; hoje em dia, o Z-buffer é uma ínfima parte de tudo o mais que uma simples placa gráfica consegue fazer num computador de secretária...
Outro exemplo vai para a baixíssima resolução, em número de pixels, dos sistemas de visualização (alguém ainda se lembra das "excelentes" resoluções 640*480?), assim como para o número de cores representáveis em simultâneo e que obrigavam à utilização de tabelas de cores... Algo que até nos coloca um sorriso na boca, hoje em dia...
Com tudo isso porém, o grupo de Computação Gráfica ia traçando o seu caminho e faziam-se projetos com empresas... Algumas empresas grandes, internacionais e nacionais... Estivemos envolvidos num projeto com a NEC, desenhando e implementado a componente de interação para um sistema que o INESC desenvolveu; um pouco mais tarde realizámos um pacote de interação para o modelo "Valor Água", da REN/EDP, e tivemos a responsabilidade da componente de desenho de um grande projeto da EFACEC, no domínio dos sistemas SCADA.
Pelo caminho íamos entrando em alguns projetos com financiamento nacional e internacional... A título de exemplo, refira-se que liderámos o desenvolvimento de um sistema de CAD para a indústria do calçado, com o INESC de Lisboa; o projeto Shoe-CAD foi financiado pela NATO e contou com a participação do Centro Tecnológico para a indústria do Calçado e com algumas empresas fabricantes; resultou em um produto que potenciou a criação de uma spin-off em Lisboa, da responsabilidade de pessoas da equipa de desenvolvimento. A instituição financiadora considerou o projeto, após o seu encerramento, um caso de sucesso exemplar.
Um pouco mais tarde, foi o desafio de desenvolver aquilo que foi talvez o primeiro jogo televisivo nacional baseado em computadores... A palavra "desafio" é apropriada: placas gráficas extremamente complexas de usar; imagens com design de autor que colocavam uma exigência enorme, face aos recursos manifestamente insuficientes; tecnologia ainda imberbe no que respeita a comunicações entre (dois) computadores... e claro, as malfadadas leis de Murphy que não deixaram de aparecer, quanto mais não fosse para "explodir" um disco duro nas vésperas da primeira demo...
Artur Pimenta Alves: Como avalias a terceira fase da evolução que conduziu à fusão dos sistemas gráficos com os sistemas de informação, criando capacidade para responder ao desenvolvimento dos emergentes sistemas de informação geográfica, crescentemente utilizados nas empresas e na administração? Pode-se dizer que o INESC deixou uma pegada nesse domínio?
A. Augusto de Sousa: Situamo-nos já na década de 1990... a criação da Unidade de Sistemas de Informação e Computação Gráfica trouxe algo mais do que a simples soma das partes... Integrava-se por um lado o saber que tinha já conduzido aos grandes projetos com as autarquias (sistemas de informação, engenharia de software) e, por outro lado, a interação e a representação gráfica (já quase sem expressão em termos de hardware)... e abriam-se novas portas, nomeadamente para os Sistemas de Informação Geográfica (GIS). Deu-se formação especializada em GIS, contrataram-se pessoas com esse propósito, começaram os primeiros projetos na área... Nacionais e europeus...
É aqui, nos GIS, que a "pegada" fica mais marcada na envolvente regional. O grupo inicia uma imensa atividade de desenvolvimento e de consultoria com algumas empresas mas, principalmente, com as autarquias, sedentas de conhecimento na área. É a época dos primeiros PDMs e a rentabilização desses sistemas é fundamental, nomeadamente para as Câmaras Municipais, principalmente (mas não só) na região do grande Porto.
Nesse contexto, gostaria de recordar o projeto SIMAT, pela forma inovadora como juntou empresas, a comissão de coordenação da região do norte, associações de municípios e municípios propriamente ditos. Os objetivos principais eram identificar e especificar um conjunto de facilidades baseadas em georreferenciação, de extrema utilidade para os municípios. Daqui resultou um conjunto de documentos de acesso público e que quaisquer empresas poderiam consultar, de forma a poderem desenvolver os seus produtos para aplicação às autarquias.
Em 2000 (espero não estar a enganar-me), saem do INESC algumas pessoas para formarem uma empresa na área dos GIS, a ParadigmaXis. Mais uma "pegada" que ainda perdura e que desde logo mostrou formas diferentes de trabalhar, reunindo um conhecimento profundo dos sistemas de informação geográfica, mas também um domínio claro das técnicas de especificação e desenvolvimento de software, nomeadamente em equipa, assim como, claro, um domínio absoluto das técnicas de computação gráfica e interação, tão necessárias para que os sistemas de routing por GPS, por natureza complexos, possam ser simples e intuitivos.
A "pegada" continua a ser marcada... O atual CSIG descende diretamente dos grupos mencionados e, de alguma forma, continua a laborar em áreas de investigação e desenvolvimento afins das de outrora.