30 Anos à Conversa
30 anos à conversa
José Ruela: Em certos momentos a Direção teve de tomar decisões difíceis. Queres salientar algumas dessas decisões em que estiveste envolvido (e o respetivo contexto) e em que medida podem ter contribuído para nos tornar mais fortes e mais imunes a riscos e ameaças?
Pedro Guedes de Oliveira: Talvez a decisão mais difícil de todas tenha sido, precisamente, a da criação do INESC Porto. Desde o meio dos anos 90 vivíamos, no INESC, uma grave crise institucional. Foi uma crise a que esteve associada a dimensão excessiva, impossível de manter no novo quadro financeiro, dificuldades vindas dos operadores, no caminho da privatização, mas também as diferenças de ponto de vista e de filosofia que se manifestavam dentro da direção do INESC, em que “o Porto” estava bastante isolado. Chegou a ser afirmado que os problemas do INESC acabariam no dia em que se “fechasse o Porto”, já que seríamos essencialmente os responsáveis pelo buraco.
Decidir, neste contexto, que devíamos avançar sozinhos, foi muito difícil e exigiu uma fortíssima dose de autoconfiança. E isso só foi possível por existir uma total solidariedade entre a direção (onde estavam o Artur Pimenta Alves e o Luciano Tavares) mas, sobretudo, pela evidência de que a direção teria um suporte indefetível de todos os investigadores e colaboradores do INESC no Porto.
A consciência de que a decisão era uma decisão de todos e que, portanto, os riscos e as responsabilidades também o eram, foi um fator de união e de capacidade de luta que, estou certo, foram determinantes no sucesso que, indiscutivelmente, acabámos por ter.
José Ruela: É muitas vezes referido que o nosso modelo de organização nos distingue de outras instituições de I&D nacionais e internacionais. Como é que esse modelo (e a forma como foi sendo adaptado) explica o nosso sucesso, mas também eventuais debilidades?
Pedro Guedes de Oliveira: Aquilo que me parece mais diferenciador no nosso modelo (e que eu vejo agora, de fora, “sob a batuta“ do José Manuel Mendonça) é o equilíbrio entre a existência clara de um comando e, ao mesmo tempo, a tomada partilhada das decisões; é o equilíbrio entre órgãos em que se tomam decisões executivas e outros em que se “pensa” a médio prazo; é a aposta forte no profissionalismo, nomeadamente a nível dos serviços, cuja importância não é minorada; é a capacidade de acolher e aceitar a diferença mas não perdendo nunca nem o foco nem a cultura de base. Isto tem permitido crescer sem desvirtuar, mantendo o rumo global.
Eu não sei se este modelo é causador de eventuais debilidades mas acredito que, pelo menos, não as resolve todas: o enorme crescimento institucional, a pressão da decisão e a sobrevivência num ambiente de alguma incompreensão — e, às vezes, quase hostilidade —, leva à criação de níveis de gestão intermédia e facilmente afasta “o 4º andar” dos sítios onde a ação decorre; e essa camada intermédia requer estabilidade fazendo correr o risco de que os jovens de anteontem se transformem em maduros cinquentões com tendência a se sentirem instalados. Além disso, aumenta e torna mais complexa a máquina burocrática, que facilmente começa a gerar a sua própria lógica.
Digo isto sem que esteja convencido de que nenhum destes riscos tenha já tomado proporções graves; mas são os riscos que pressinto e para os quais penso dever estar-se atento.
José Ruela: Ao longo de 30 anos ocorreram mudanças importantes (nomeadamente a autonomização do INESC Porto e a constituição do Laboratório Associado), que marcaram o início de novos ciclos, mas preservando um conjunto de princípios que nos identificam. Como manter este equilíbrio face a novos desafios? Em que medida o conceito de clusters poderá requerer não só alterações a nível de organização mas também “culturais”?
Pedro Guedes de Oliveira: Os vários “saltos” foram diversos na origem, claro, mas também na natureza. O primeiro permitiu assumir uma identidade que, não tendo (obviamente) sido inventada na altura, pôde afirmar-se e definir-se de modo mais rigoroso. Dentro desse formato criámos as Unidades, diferentes entre si mas suficientemente próximas, técnica e cientificamente, para nos entendermos e partilharmos ideias e projetos.
O segundo salto, o Laboratório Associado, colocou-nos num novo patamar, participando num núcleo restrito (uma espécie de “alta-roda”) e deu-nos a enorme responsabilidade de responder aos objetivos que negociámos e de procurar manter o dificilmente conquistado “excelente”. E foi esse o contexto inteligentemente utilizado para crescer e agregar outros grupos, levando a uma diversificação das áreas de intervenção (até porque, em várias situações, fomos mais procurados do que procurámos — e às vezes até recusámos para não nos afastarmos demasiado do núcleo original!) e essa diversificação exigia outra lógica onde se pudesse partilhar experiências e juntar competências.
Fazê-lo à volta de áreas de intervenção em que a complexidade dos problemas requer uma forte interdisciplinaridade, parece — a posteriori e com o conveniente hindsight — óbvio. Mas não era nem tão óbvio assim nem era, sobretudo, fácil, e a criação dos clusters foi uma decisão corajosa, como foi corajosa a opção de os abrir a parceiros externos que completem as competências, quando necessário.
Agora é preciso fazê-los funcionar e esse será o próximo e muito grande desafio: vai exigir uma grande capacidade de negociação e novas formas organizativas e de gestão, que consigam que as apostas de alto nível que a complexidade das questões exige, não venham a ser constrangidas por pequenos interesses e medos (nomeadamente, medo da perda de poder e de controlo) suscetíveis de serem encontrados a nível local.
Pedro Guedes de Oliveira: Na minha opinião, há três caraterísticas importantes que caraterizam, desde sempre, o INESC TEC: profissionalismo, persistência e foco. Concordas? Se não, porquê e, se sim, qual das três achas mais importantes (e porquê).
José Ruela: Concordo que são três caraterísticas importantes, mas não sou capaz de destacar qualquer uma delas, porque na minha opinião não valem por si de forma isolada. Entendo que são aspetos complementares da nossa cultura, que igualmente integra outras caraterísticas.
Neste contexto destaco a solidariedade institucional, ancorada numa missão comum que transcende as caraterísticas próprias e os objetivos específicos dos diversos grupos e centros, e que por isso tem permitido garantir a coesão interna. Considero que esta é uma mais-valia importante, que nos distingue de instituições congéneres.
Acrescento ainda a confiança, a independência e a capacidade de renovação e adaptação, quer na organização (a todos os níveis) quer na resposta a novos desafios científicos e técnicos.
Pedro Guedes de Oliveira: Ao longo dos 30 anos deve ter havido muitos factos marcantes. Indica-nos dois ou três deles, justificando a sua importância.
José Ruela: O primeiro facto marcante foi naturalmente a criação do polo do INESC no Porto (INESC Norte), a que está associado o SIFO, o nosso primeiro projeto bandeira. Este projeto, pioneiro em Portugal na conceção e desenvolvimento de um protótipo laboratorial de uma rede de comunicações de banda larga com integração de serviços, congregou uma equipa multidisciplinar e permitiu a criação de uma infraestrutura laboratorial significativa para a época. Foi, por isso, a semente para a atividade de investigação em diversas áreas e o alicerce sobre o qual se vieram a formar grupos autónomos, que mais tarde deram origem a alguns dos atuais Centros de I&D.
Destaco a seguir, a partir do final da década de 1980, a participação em projetos europeus dos programas ESPRIT e RACE, porque marcou o início da nossa internacionalização e o estabelecimento de parcerias com empresas e centros de investigação de topo e nos permitiu acompanhar e mesmo contribuir para avanços no domínio das tecnologias de informação e comunicação.
Outro marco relevante foi naturalmente a autonomização do INESC Porto, porque na minha opinião foi nesta altura que se criou a nossa identidade, com uma missão clara e mobilizadora e um modelo de organização que se revelou capaz de se adaptar e evoluir ao longo do tempo.
Finalmente refiro a constituição do Laboratório Associado, porque corresponde a uma fase superior de evolução do nosso modelo, com a atração e integração natural de novos grupos de investigação e o reforço da cooperação entre os Centros de I&D.
Pedro Guedes de Oliveira: 30 anos depois, e 30 anos mais velhos, de que é que tens saudades?
José Ruela: Não olho para o passado com um sentimento de perda, até porque o presente continua a oferecer desafios interessantes e aliciantes, a nível institucional e pessoal, mas guardo naturalmente gratas recordações dos 30 anos que agora se comemoram.
Gosto de lembrar os tempos “heroicos” e irrepetíveis do SIFO, porque sentíamos que estávamos a construir de raiz algo novo, e o entusiasmo da participação nos primeiros projetos europeus (algo que entretanto se tornou banal e natural), que reforçaram a confiança nas nossas capacidades, nos deram maior visibilidade e permitiram o estabelecimento de parcerias estratégicas e a celebração de contratos com a NEC do Japão e a BBC R&D que, pela sua importância e dimensão, são ainda hoje uma referência.
Neste contexto, e porque tive uma participação ativa, destaco a parceria com a BBC, que permitiu criar ou consolidar competências que abriram caminho para novos projetos e desafios com impacto em quase todas as áreas de investigação cobertas pelo Centro de Telecomunicações e Multimédia
Recordo também o espírito de equipa e as relações de amizade que se foram construindo e que ainda hoje perduram.
Finalmente, foi um privilégio e sinto orgulho de ter participado desde o início neste percurso coletivo, cuja memória devemos preservar. Este é apenas um pequeno contributo.
