A Vós a Razão
CriAtividade
Por Rui Penha*
Falamos hoje regularmente de criatividade: das indústrias criativas ao movimento DIY (do-it-yourself), passando pelos media digitais e, claro, pela cultura. A capacidade para pensar fora da caixa tão rapidamente se transformou numa característica desejável em qualquer situação como, logo de seguida, se esvaziou num chavão presente em todos os curricula vitae. Subsistem, contudo, vários mitos sobre a criatividade. Um deles é o de que todos os artistas são, por inerência da sua formação e atividade, criativos: na verdade, muitos — incluindo alguns dos que mais celebramos — passaram toda a sua vida a perseguir uma só ideia, na qual se tornaram, naturalmente, muito proficientes. Mas o mito que me traz a estas linhas é um ainda mais comum: o de que a criatividade é um dom, uma capacidade peculiar que está misteriosamente reservada a apenas alguns de nós.
Se de outra forma não fosse, podemos verificar que tal não é verdade através da simples observação das crianças a brincar: todas, sem que conheça qualquer exceção, são criativas. Então porque é que nem todos mantemos esta capacidade ativa ao longo da vida? Porque é que para algumas pessoas a criação parece uma condição natural e para outras uma tarefa hercúlea, se nalgum ponto das nossas vidas fomos todos igualmente criativos? Observar crianças a brincar pode dar-nos algumas pistas sobre meios que parecem conduzir à criatividade: a disponibilidade para se divertirem sem objetivos concretos; a ausência do medo do ridículo; a livre apropriação das referências; a impaciência para obter resultados; a vontade de interagir com e a disponibilidade para admirar os pares como condições anteriores à competição e ao julgamento. Dado o exíguo espaço deste texto, concentrar-me-ei numa característica que, na observação que tenho feito dos meus filhos, me parece particularmente importante: a capacidade para dar a um objeto um nome e um papel radicalmente diferentes daqueles que lhe são intrínsecos. E, sobretudo, a complacência de suspender por momentos a descrença de que as folhas do livro do pai não são, no materialista mundo a que os adultos chamam realidade, folhas de alface para juntar à sopa de peças de lego — perdão, de batatas e cenouras.
Na sua maravilhosa proposta de uma teoria geral da criatividade humana aplicável aos campos do humor, da ciência e da arte [1], Arthur Koestler desenvolve a ideia de que a criatividade consiste na “bissociação de matrizes previamente não relacionadas”. Estas “matrizes de pensamento” são as nossas capacidades, os códigos que dominamos, o conjunto de normas que governam o plano em que nos movemos. O ato da criação dá-se então no exato momento em que percebemos que algo pode ser um pivô na relação entre duas matrizes, no instante em que um dado ponto no qual focamos a nossa atenção nos revela a linha de interseção entre dois planos. Nas palavras de Koestler, a criatividade é “a perceção de uma situação ou ideia de forma simultânea em dois referenciais que são auto-consistentes, mas habitualmente incompatíveis.” Isto acontece então no humor (hahaha) — onde há uma colisão de matrizes que resulta no riso —, na ciência (aha!) — onde se procura a integração das duas matrizes numa nova síntese — e na arte (ahh) — o palco para a justaposição e o confronto das matrizes. Voltando à brincadeira de criança, é fácil perceber que o faz-de-conta se torna num catalisador da bissociação: se aceitarmos que um xilofone com trela pode muito bem ser o cãozinho Milou, é fácil perceber que se tratará então de um animal com costelas musicais. O que para a criança é um salto fácil, parece ao adulto o cúmulo da criatividade.
Não raras vezes, desde a minha recente chegada ao INESC TEC, me vi confrontado com a expectativa de que a minha área de especialização — a música, e, em específico, a composição — de algum modo me vincule à demonstração de uma particular facilidade em ser criativo: que seja um atestado de que tenho, de facto, o dom. Estranho a suposição precisamente por ser para mim tão claro que a criatividade é um processo — ou, melhor diria, uma disponibilidade — que se exercita e se desenvolve, mas que, não obstante difícil, não exige quaisquer requisitos para além dos que nos são naturais. A especialização numa determinada área leva-nos a um conhecimento profundo das suas características peculiares, das suas normas e das fronteiras que empurramos até que nos cedam um pouco mais de terreno, um pouco mais de conhecimento. Esta familiaridade torna a navegação no plano em que nos encontramos tão fluída que pode acabar, por vezes, por dificultar a bissociação com outro plano, por ser um entrave à surpresa que sempre antecede o ato criativo. É por essa razão que me parece particularmente importante o facto de o INESC TEC reunir sob o mesmo teto institucional um leque de áreas tão abrangente e um número muito significativo de pessoas de diferentes origens: até consegue fazer com que um doutorado em música se sinta em casa! Inúmeras soluções criativas podem muito bem estar, então, à espreita no encontro entre áreas, no confronto de metodologias: na busca do ponto comum que reside em planos — e, porventura, também em andares — distintos.
[1] Koestler, A. (1964). The Act of Creation. London: Hutchinson.
*Investigador do Centro de Telecomunicações e Multimédia (CTM)