Asneira Livre
raízes do brasil e herança portuguesa
* Por José Celso Freire Júnior
A brasileira família Buarque de Holanda não é totalmente desconhecida dos portugueses. Especialmente o Francisco... tanto mar! Mas o pai (Sérgio) e o tio (Aurélio) do Chico tiveram contribuições importantíssimas para a cultura brasileira.
Sérgio Buarque de Holanda foi historiador e escreveu um dos livros mais importantes para a luta por uma identidade brasileira. Raízes do Brasil foi inovador ao valorizar a herança cultural e não desprezá-la. Valorizar não significa qualquer atitude ufanista e acrítica frente às mazelas presentes na formação do país. Mas seu principal valor está numa idéia-força implícita: o futuro do país não pode ser planejado contra o que somos. A negação do próprio é uma ilusão; uma armadilha que nos imobiliza. Conhecer o passado e interpretá-lo é condição para o que podemos chamar de “autonomia epistemológica”. Nenhum país é uma folha de papel em branco...
Mesmo para quem não conhece o livro, é fácil imaginar o quanto de Portugal há nele. Num jogo de idas e vindas, são analisadas, dentre outras questões: a situação “periférica” de Portugal em Europa na época das navegações; as diferenças entre portugueses e espanhóis em seus esforços coloniais; as implicações para o Brasil das diferenças entre valorização da aventura dos ibéricos em detrimento da valorização do trabalho típica dos reformados. Mas é no conceito de homem cordial proposto por Sérgio Buarque de Holanda que eu gostaria de me deter.
Segundo ele, essa cordialidade está longe de significar civilidade ou polidez no trato. Muitas vezes pode significar exatamente o contrário, pois vem de cordes, coração! Há aspectos pouco modernos neste homem cordial, como sua tendência em ver o Estado como uma continuidade da família (patriarcal, rural e colonial) e, conseqüentemente, sua dificuldade, quando detentor de posições públicas, em distinguir o público e o privado. Nas suas palavras: “... falta ordenamento impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático”.
Mas, por outro lado, Holanda considera que o homem cordial é a grande contribuição brasileira para a civilização. Isso porque, como arquétipo de homem, representa um tipo de recusa a algumas características hoje hegemônicas: a padronização, a impessoalidade, as relações coisificadas. É uma recusa à unidimensionalização do humano, para utilizar o conceito de Marcuse. Minhas vivências em Portugal me dizem que muitas das características deste homem cordial ainda persistem no Brasil e em Portugal. Há características que nos unem, portugueses e brasileiros, maiores que a língua. Estão presentes nas formas de ser e de viver, na recusa em viver formas regulatórias e procedimentos que castrem o espontâneo.
A imprensa diz que o brasileiro é bem-vindo em qualquer lugar do mundo (ou na maioria deles...). E isso devido à sua amabilidade, capacidade de integração e alegria. Como bem afirmou Ruy Guerra, "O brasileiro se encontra na alegria", e nela também nos encontramos com as outras pessoas. Mas é também verdade que para o “tipo ideal” que é o conceito de homem cordial, mesmo a tristeza é preferível à satisfação sem sal da mesmice sem paixão.
Esta estadia no Porto permitiu que eu saboreasse essas idas e vindas de influências da matriz do homem cordial para seus frutos além mar. Sim, a herança portuguesa definiu inúmeras das características do povo brasileiro. Herdamos, sim, a amabilidade, o interesse em auxiliar, a disposição para uma conversa e para a amizade. Essas características entre outras, moldaram a personalidade brasileira e definiram seu ponto de encontro na alegria. Ou na tristeza. Mas não na indiferença.
Os portugueses radicados no Brasil e seus descendentes mais próximos necessitam rever a “terrinha” de tempos em tempos. Esse desejo de retorno já herdei, também. Uma maneira a mais de sair da indiferença. De alimentar a alegria.
*Assessor de Relações Externas da Universidade Estadual Paulista (UNESP Brasil)