A Vós a Razão
"O Som como Paixão"
Por Luís Gustavo Martins*
Aproximavam-se os meus 16 anos, em plena travessia da adolescência, quando um certo dia o meu pai me confrontou, num tom que denunciava uma certa inquietação, com a pergunta: "porque é que ainda não me pediste uma mota?! O teu primo não dá descanso ao teu tio por causa disso…".
Quem me conhece sabe que nutro (e nutria já naquela altura) uma séria paixão por tudo o que são motores e velocidade (mas mais na variante de quatro rodas – talvez por sempre ouvir o meu avô dizer que "burra que não se aguenta em pé sem o dono em cima não é de grande serventia").
Mas o facto é que, desde o dia que me fora dada a oportunidade de frequentar uma escola de música, onde me foi colocado à frente um órgão eletrónico como instrumento (um CASIOtone 401, se a memória não me trai), a minha curiosidade e fascínio passou a centrar-se em tudo o que fosse eletrónico e com o qual fosse possível produzir música ou som (e falo aqui de "música" no seu sentido mais, digamos, lato).
E não demorou muito para o meu pai constatar que, apesar de isto da "música eletrónica" poder ser um hobby que não acarretava os riscos inerentes a disponibilizar um veículo motorizado a uma criatura tomada por overdoses hormonais próprias da puberdade (para grande alívio da minha mãe), esta mania dos "sintetizadores musicais" não lhe haveria de sair mais branda na bolsa ("brinquedos" daqueles não saem baratos). Nem nos ouvidos (gosto de atribuir à presbiacusia a atual quase surdez do meu pai). Nem muito menos em preocupações sobre o quão inquinado poderia sair o meu futuro profissional caso eu insistisse na perseguição deste fascínio eletroacústico.
Mas esta obsessão com o som cresceu. E foi-se tornando algo mais sofisticada. Um certo dia, ainda rapazola de menor idade, estive muito perto de ser expulso da loja do então representante no Porto de um conhecido fabricante japonês de sintetizadores musicais. E tudo porque insisti em exigir que alguém me explicasse devidamente que história era aquela da síntese FM no DX7 (a grande novidade naqueles inícios da década de 80). Ainda hoje tenho a sensação que o gerente da loja terá mesmo dito ao meu pai que "não era de todo normal um miúdo da minha idade fazer perguntas daquelas", tendo-lhe mesmo deixado a dica gratuita: "Compre-lhe antes uma mota, que isso passa-lhe! Vá por mim."
Não tenho a certeza se este episódio foi, ou não, o catalisador que determinou todo o meu percurso académico e profissional até aos dias de hoje. Mas, por romantismo, gosto de acreditar que sim. Estou certo, porém, que foi esta falta de respostas à minha curiosidade sobre o som (eletrónico em particular) que me levou a iniciar uma saga na procura de conhecimento nesta área.
A questão que se punha agora era "o que queres ser quando fores grande?".
Não tendo sentido grande entusiasmo lá em casa com a minha empolgada ideia de ser piloto de automóveis, abriu-se espaço para o som se assumir definitivamente como o foco do meu plano de vida. "Queres ser engenheiro de som, é isso? Então como pretendes estudar para isso?". Sendo um adolescente português, em Portugal, na final da década de 80, as respostas não eram óbvias. Mas a escolha de um curso Técnico-Profissional em Eletrónica parecia apontar na direção certa. E a certeza aumentou quando me deparei com uma cadeira de "Rádio e Televisão", onde no programa aparecia algo familiar como "Modulação FM". E depois uma outra chamada "Sistemas Digitais" onde ficou finalmente claro como é que era afinal possível fazer-se som com apenas uns e zeros.
A vontade de aprofundar conhecimento sobre o som eletrónico conduziu-me ao ingresso no curso de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores da FEUP, no início da década de 90, decisão esta que se veio a revelar determinante no meu percurso académico e profissional. "Pelo menos sempre é um curso com várias saídas profissionais…", comentavam os meus pais, com um ar algo aliviado, mas sempre de incondicional apoio.
E é no meio de cinco anos de cadeiras sobre máquinas elétricas, automação industrial, protocolos de comunicações, e outras no mínimo tão desviantes (que hoje valorizo, se não for por mais nada, pelo seu contributo propedêutico), que me deparo com oásis como Circuitos e Sistemas, Processamento de Sinal e Sistemas Digitais. Não que em alguma delas se falasse de som propriamente dito, mas qualquer vislumbre de sinusoides, filtros, espectros, entre outros tópicos, que para a maioria dos meus colegas não passavam de pesadelos indecifráveis e sem qualquer vislumbre de fascínio, soavam-me maravilhosamente a… Som.
Mas a beleza está no olhar do observador, e a verdade é que a conclusão do curso aproximava-se, e começava a instalar-se em mim um conformismo de que muito provavelmente o meu futuro profissional passaria ao lado desta minha paixão pelo som eletrónico (pelo menos em Portugal). Mas eis que chega o dia de escolher um projeto de final de curso, e na lista de projetos para o qual cada aluno se podia candidatar destacava-se a seguinte opção (admito que possa ser a memória a pregar-me partidas, mas eu recordo esta opção na lista afixada no placar do Departamento como sendo a única rodeada de luzes néon a piscar freneticamente):
"Equalizador Digital de Áudio de 20 Bandas, Prof. A. Pimenta Alves, Prof. Aníbal Ferreira - INESC (Norte)."
Eu parecia fadado em estar no lugar certo, à hora certa, e com as capacidades e motivações certas (esperava pelo menos eu) para me atirar ao desafio. Tendo tido a felicidade de ser selecionado para o projeto, aquele foi na realidade o meu primeiro contacto com o INESC (à data ainda "Norte" e não "Porto"). Foi um ano de trabalho intenso, mas muito entusiasmante (na companhia de dois colegas e amigos), e custava-me a acreditar na sorte que eu tivera por tal oportunidade me ter sido proporcionada (não havia grande memória de propostas de projetos em áreas do som na FEUP, excetuando alguns na área da fala ou dos amplificadores áudio).
Mas a sombra sobre o que o futuro me poderia reservar mantinha-se. O projeto de final de curso estava a chegar à sua conclusão, e começaram as idas a entrevistas de emprego (que naquela altura apareciam aos magotes). Nenhuma das ofertas soava particularmente fascinante – perdi a conta às vezes em que em plena entrevista dava por mim a tentar ser convencido de que "A área técnico-comercial é uma área muito interessante e de muito futuro…" (não duvido que seja). A proposta mais atrativa que apareceu foi a de integrar os quadros de uma grande empresa portuguesa na área das telecomunicações, com sede em Lisboa e laboratórios de I&D em Aveiro, mas para exercer funções na área dos protocolos de comunicações para a (então ainda recente) rede celular de voz. O salário era inacreditavelmente aliciante para um recém-licenciado (ainda hoje o seria!), e eu sentia-me tentado a vender a "alma ao diabo" e conformar-me, finalmente, que em Portugal não iria ser possível prosseguir uma atividade profissional na área da "engenharia do som". Talvez um dia, mais tarde, quem sabe.
"You have a new email"
Estava entregue o projeto final de curso (que tinha sido concluído com sucesso), e já com o diploma na mão, era hora de decidir por um emprego. Após várias entrevistas, estava a dias de ir a Lisboa para a derradeira e decisiva prova, e definir, por fim, o meu futuro profissional.
Mas um email (coisa nova na altura) acabara de chegar à minha inbox (no pine dos velhinhos terminais VT100 de fósforo verde do CICA): "FROM: palves@inescn.pt; CC:ajf@inescn.pt; SUBJECT: Criação de Grupo de Áudio no INESC".
Era um convite para uma bolsa de investigação no INESC, para desenvolver atividade no (novo) Grupo de Áudio da Unidade de Telecomunicações e Multimédia (UTM). Era quase inacreditável como uma oportunidade destas surgia, uma vez mais, no momento certo e no local certo (não me agradava muito a ideia de ter que mudar para Lisboa, ou mesmo para Aveiro – apesar das minhas raízes de Sever do Vouga, eu tinha já sido adotado pela Invicta fazia mais de 10 anos). A escolha foi imediata, e a entrevista em Lisboa ficou sem efeito.
E foi assim que, no ido ano de 1997, integrei orgulhosa e entusiasticamente o Grupo de Áudio da Unidade de Telecomunicações e Multimédia do INESC como bolseiro de investigação. E foi ali, que durante 14 anos, me formei como pessoa e profissional, sob a orientação de grandes Professores (dos quais destaco os Prof. Aníbal Ferreira, Prof. Pimenta Alves, Prof. Pedro Guedes de Oliveira e Prof. José Ruela) e ao lado de muitos e grandes colegas, que se tornaram grandes amigos.
A oportunidade de desenvolver hoje atividade na área da minha paixão – o Som – devo-o em grande parte ao INESC Porto e a todas as apostas e oportunidades que me foram incondicionalmente proporcionadas nesta casa.
Hoje, chegou o momento de me "desligar" oficialmente do INESC Porto. Mas a minha verdadeira ligação a esta casa é inquebrável, pois partilho com ela grande parte da minha própria história, da qual acima vos lavrei apenas uma versão que não esgota toda a extensão da minha gratidão.
Lembro-me de o meu pai – como qualquer pai consciente e genuinamente preocupado com o futuro do seu filho – comentar na altura com a minha mãe: "Viste, eu não te disse? Devia-lhe era ter dado o raça da mota quando ele era mais novo! No que havia de dar a mania dos sintetizadores… desistir de um salário daqueles por uma bolsa… teimoso o miúdo!".
Seguramente bafejado pela sorte, mas guiado por uma forte vocação e paixão pelo som, não posso passar no entanto sem deixar um voto de louvor aos meus pais por todo o apoio e incentivo para perseguir as minhas verdadeiras vocações (se bem que eu ainda gosto de acreditar que passei ao lado de uma carreira de sucesso no desporto automóvel ;-)). Eles, tal como o INESC, são protagonistas nesta viagem, e sem eles, tal como sem o INESC, esta estória não teria sido possível.
*Antigo colaborador da Unidade de Telecomunicações e Multimédia (UTM)