A Vós a Razão
A "voz" da razão
Por Manuel Eduardo Correia*
Se tivesse mais 20 anos, o título deste texto poderia facilmente ser “A voz da razão”. Não os tenho, no entanto já sou suficientemente “antigo” para ter vivido um modo diferente de estudar, aprender e trabalhar com computadores na Universidade.
O mundo da Informática era, há 25 anos, tão diferente do atual que quase pode parecer surreal. Os tempos eram de facto outros e para os recordar nada como relatar como eram as nossas aulas da primeira cadeira de programação do Curso de Matemática Aplicada – Ramo de Ciência de Computadores da Faculdade de Ciências, nos já idos anos de 1986.
Um professor mais iluminado e pelos vistos patriota, entretanto já reformado, considerava na altura que a forma mais pedagogicamente correta de ensinar programação consistia em sujeitar os alunos a uma linguagem de programação em tudo semelhante ao “C”, com a novidade de que as expressões da linguagem, em vez de serem em Inglês, eram em Português. Imaginem a linguagem de programação “C” em Português e ficam a conhecer a fantástica linguagem “P”. Em vez de ciclos “while”, tínhamos ciclos “enquanto”, em vez de expressões condicionais “if” tínhamos “se”, etc.
No entanto, o mais extraordinário nem sequer era a novidade mundial do Português “embebido” nos programas; tal ficava reservado para a total ausência de interpretador ou compilador para correr os programas que éramos desafiados a escrever nas aulas práticas. E que aulas! Se agora estamos em crise, imaginem a motivação que os alunos em 1986 tinham para aprender a programar usando exclusivamente papel, lápis e borracha como editor e depois terem que “compilar” o programa, salvo seja, no assistente das aulas práticas que dizia se o programa estava bem escrito, se implementava o algoritmo pretendido e se iria conceptualmente correr corretamente em alguma máquina imaginária.
No semestre seguinte, para a segunda cadeira de programação e depois de passada a odisseia do “P”, vinha a programação “a sério” em “C”. As nossas mentes de programador imaginário já tinham tido a oportunidade de ser preparadas e formatadas com as aventuras no “P”, pelo que agora seria mais fácil e natural passar para algo mais concreto como o “C” e aprender coisas fantásticas como apontadores e mistérios dos mistérios, funções recursivas.
Desta vez já tínhamos compilador e máquinas concretas para correr os programas. As máquinas dos laboratórios[1] de programação resumiam-se a vinte Ataris 1040ST[2] e o compilador era o MCC[3] (“Metacomco C Compiler”).
Os Ataris foram outras das inovações da FCUP que, em vez de seguir a via mais tradicional e ter optado por montar um laboratório com IBM PCs, tomou antes a decisão de equipar uma pequena sala, tipo marquise, bem escondida, no atual edifício da reitoria, junto ao museu de história natural e que ficou a ser conhecida durante muitos anos como a sala dos Ataris, com estes equipamentos.
Os Ataris eram umas máquinas inovadoras para a altura, em termos de hardware de facto superiores aos IBM PCs e muito mais baratas, pois eram acima de tudo consideradas máquinas para jogos. Para quase todos os informáticos da minha geração que tiveram o seu primeiro contacto com o mundo da informática através do ZX Spectrum[4] 48k de 1982, os Ataris representavam um novo mundo de oportunidades.
Estas máquinas tinham um CPU Motorola 68000 a 8Mhz com 1M de RAM, algo que na altura correspondia ao dobro da capacidade de processamento de um IBM PC com o 8086 da Intel com 640k RAM. Tinham também o que se pode dizer um verdadeiro interface gráfico, o GEM[5] (Graphical Environment Manager), que apesar de não ser tão bom como o do contemporâneo Macintosh, era apesar de tudo muito superior ao DOS.
Para os dias de hoje dos multigigas CPUs, RAMS e discos não deixa de ser surpreendente que numa disquete de 3”1/2 de 720k (outra inovação, o IBM PC da altura ainda usava disquetes de 5”1/4) fosse possível ter o sistema operativo do Atari, incluindo GUI, compilador de C com o respetivo IDE e ainda houvesse espaço de sobra para alguns jogos, um processador de texto e espaço para os programas, incluindo binários que tínhamos que produzir para as aulas de programação. Hoje nem uma fotografia de telemóvel conseguíamos colocar nessas disquetes. Estes sim é que eram os verdadeiros tempos da crise e nós nem sabíamos.
[1] Resumiam-se a um cubículo envidraçado bem escondido.
[2] https://en.wikipedia.org/wiki/Atari_ST
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/MetaComCo
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Zx_spectrum
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Graphical_Environment_Manager
*Colaborador no Centro de Investigação em Sistemas Computacionais Avançados (CRACS)