A Vós a Razão
Quatro Extrapolações sobre a Linguagem ou Os Lugares de Fronteira
Por Gilberto Bernardes*
I. A infância
assume-se como um tempo privilegiado de aprendizagem. É nela que a criança ao interagir com estímulos intrínsecos e extrínsecos transforma a sua visão da realidade e desenvolve o código fundamental que irá alicerçar o seu pensamento e relação com os demais, isto é, a linguagem.
Com a linguagem articulamos o núcleo duro da nossa cultura e da(s) nossa(s) história(s). É nela que nos formamos e definimos como seres unos, impregnados de influências, desejos, expectativas e ideologias ou (pre)conceitos.
Sem os códigos linguísticos não conseguimos discutir diferentes realidades, nem construir utopias ou sonhos. Sem ela não se pode contar como foi, como é, como poderia ser e como poderá ser. Mas, ao estilhaçar a linguagem questionamos também a ideologia e abrimos lugar ao desconhecido. Abandona-la é imigrar. Em suma, a linguagem
II. ao deambular entre a realidade e a fantasia
transporta-nos para o devir, lugar de vontades e representação que Lewis Carroll um dia tão bem (d)escreveu ao transpor Alice para além do espelho. Matemático de formação, Carroll questionou constantemente na sua obra a lógica das coisas. Alice, ao longo de uma belíssima narrativa, encontra os fantasmas da sua infância personificados em figuras com as quais dialoga.
Numa das sua deambulações, Alice encontra Humpty Dumpty que com ela argumenta que as palavras significam exatamente aquilo que ele "quer que elas signifiquem,” e que por isso, defende ele, importa saber quem diz para que se saiba o seu significado. Contra os absolutos matemáticos, H. Dumpty defende uma lógica axiomática dos significantes, oferecendo aos signos uma liberdade e aos falantes a sua apropriação e transformação.
H. Dumpty posiciona-se na charneira entre os dois mundos. Através dele e sob a égide da linguagem, Carroll empresta ao real devaneios de fantasia e à fantasia o questionamento do real. Através do seu olhar curioso, Carroll
III. cria novos lugares e esbate limites
ao questionar convenções linguísticas. Nesses lugar de fronteira encontramos necessariamente os seres criativos, que ao apropriarem e transformarem um mosaico de referências expandem o conhecimento e o belo.
Nesses lugares de fronteira e constante negociação posicionam-se igualmente os desafios que diariamente enfrento no grupo de computação sonora e musical do INESC TEC. Ao sonho de uma inteligência musical assente sob uma linguagem formal de máquina há que emprestar uma pluralidade de visões e linguagens sobre o mesmo objecto para que possamos expandir a área para além da criação de meras próteses instrumentais.
A pluralidade de visões sobre um único objecto é a base da estratégia do grupo, que, assim, agrega a possibilidade de produzir conhecimento transversal a diferentes áreas enriquecendo-as através da sua síntese. Em suma, ao posicionarmo-nos nas fronteiras de várias disciplinas, assumimos um constante questionamento dos seus métodos e princípios fundamentais,
IV. que tantas vezes são esquecidos na ciência, na arte e na vida.
Importa então colocar em relevo e alargar a discussão sobre as vantagens, os problemas, as estratégias, e os métodos deste “fazer” ciência num universo interdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar e/ou transdisciplinar. Apesar de encorajados a articular o seu trabalho entre disciplinas, os investigadores deparam-se com um fosso na concretização dessa prática. A criação de pontes que nos permitam articular linguagens plurais e necessariamente díspares estão ainda longe de serem objetivos simples.
A urgência de soluções dialógicas para a ciência é ainda reforçada pelo exacerbado grau de especialização dos seus agentes. Perdi a conta às vezes em que o excesso de informação me encerrou no míope nicho do ‘dividir e/para conquistar’ onde urge a falta de referenciais humanísticos.
Na profusão do ruído, onde incluo as enviesadas ideias que aqui vos deixo, resta-me, à semelhança de Alice, retomar a brincadeira de criança que nos faz ludicamente (re)inventar o mundo ao transformar a linguagem. Repletos de infância, olhemos através do espelho e entreguemo-nos à análise, à imaginação e à ação, emprestando aos lugares de engenho a arte, e da arte o engenho.
*Colaborador no Centro de Telecomunicações e Multimédia (CTM)